19.3.12

Consulta com Dr. Nietzsche

"A vida é devoração pura". E como um descendente torto de Tupi que sou, por muito tempo saí por aí, sem eira nem beira, devorando a carne de inúmeros estrangeiros. É claro que isso me resultou numa terrível indigestão. Durante anos sofri de dores e náuseas.

Certo dia, quando eu sofria dores horripilantes de gases, ouvi falar de um tal doutor Nietzsche e de seus trabalhos. Confesso que no começo fiquei um tanto ressabiado, pois seus adjetivos eram muitos: louco, excomungado, diabólico, maldito, anticristo. E eu que já havia tentado de tudo – médicos, remédios, chás, folhas, raízes, frutos e posições para dormir – e nada tinha adiantado, me perguntava que mal haveria em consultá-lo.

Fui então ao seu encontro. Mal botei os pés em sua sala, o doutor mirou-me com um ar presunçoso e disse:

- Meu jovem, nem precisa me dizer que mal o aflige. Seu aspecto decadente o condena, e julgo saber a moléstia só pelo fedor que sua pele exala.

E ele começou a se gabar:

- Sabe por que me insultam com tantos nomes?
- Não senhor.
- Porque me invejam. Invejam meu vigor. E sabe como alcanço tamanho bem-estar?
- Não senhor.
- Não comendo todas porcarias que me aparecem!
- Mas a fome é tanta, doutor – disse-lhe gaguejando.

E com um leve sorriso nos lábios, que fazia seu avultoso bigode erguer-se, respondeu:

- Meu jovem, se você quer mesmo se livrar das indigestões e obter uma vida vigorosa alimente-se somente daquilo que lhe faça bem.
- E como saberei o que me faz bem doutor?
- É fácil. Ao levar o alimento à boca sinta seu sabor tocar a língua, deixe a boca salivar e se ele proporcionar prazer, aí sim a devore como quiser, seja mastigando vagarosamente ou simplesmente enfiando goela abaixo. E se por um acaso começar a sentir qualquer indisposição mude imediatamente de cardápio! Mas não posso dizer-lhe que este ou aquele alimento cairá bem para você. A dica que dou é a de selecionar. Mas deixe que as tripas selecionem, somente suas vísceras lhe dirão se este ou aquele alimento aumentará ou diminuirá sua potência de vida.

Desde o dia que consultei o Dr. Nietzsche nunca mais sofri empacho. Aprendi a selecionar as carnes, evacuando o que me molestava – Construtivismo, Competências, Cidadania, Conscientização, Sujeito, Objeto, Transcendência, Absoluto, Metafísica, Verdade, Eu, Dialética – e retendo em forma de nutrientes a carne daqueles que me revigoravam, fazendo de suas carnes a minha própria – Spinoza, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Suely Rolnik, Romualdo Dias, Peter Pál Pelbart, Luiz Orlandi, Antonio Negri, Grupo Doze, Boaventura de Souza Santos, Tomaz Tadeu da Silva, Sandra Corazza, Winnicott, Freud, Nietzsche, Hannah Arendt, Eni Orlandi, Guimarães Rosa, Manuel de Barros, Clarice Lispector, Oswald de Andrade.

Contada a história de minha consulta com Dr. Nietzsche e sua preciosa prescrição – a dieta seletiva – e, apresentado o suculento cardápio de estrangeiros do qual me sirvo, já não resta mais nada a fazer a não ser desejar-lhe “Bom Apetite”, e esperar que o contato das minhas carnes com as suas não ocasione uma má digestão, mas sim a proliferação de devires.

Bom Apetite!

18.3.12

Não sou
Nem deixo de ser.
Tampouco estou de algum jeito
Seja assim, assado, cozido, refogado...
Também não estou em parte alguma
Aqui, ali, lá, acolá...

Meu estado ou minha estada não é importa.
Muito menos "quem sou eu".

Por que?
Porque a questão "quem sou eu" é meramente estúpida.
Indigna de ser respondida.

Quem a formula não vê ou não quer enxergar
Que esse Eu moderno e inflado não passa de um vazio
De uma ilusão
De uma crença em um modelo identitário.
Em um Ser que possui uma Essência
um Núcleo
uma Identidade
um Ego
uma Consciência
um Eu.

Pura tolice!
Pura balela esotérica!

Meu corpo não passa de um terminal
Por onde percorrem inúmeras conexões,
Infinitos universos que tocam minha pele

Nele habita uma Multidão
De vozes, cheiros, cores, sons, gostos, dores, rostos, lembranças, desejos...

Ela vive em minhas entranhas
Nas vísceras
Nas tripas
Na boca do estômago

Como posso ser algum EU com tantos eus, outros e nós que me habitam?
Que essas palavras não sejam apenas um amontoado de letras
Mas
Um grito voraz
Um ranger de dentes
O desabrochar de uma flor
Uma risada cheia de mingau
Perder a medida
O prumo
A régua
A regra
O limite
A postura
O controle
A direção
O sentido
As rédeas
As estribeiras

PERDER-SE!
Só quando as luzes da cidade se apagam
É que posso ver as estrelas
Quem dera apagassem as estrelas
Para mirar as janelas iluminadas