23.6.10

Infância II

Em certo momento da minha vida quis fazer ginástica olímpica. Não que eu soubesse o que era isso, só o desejava porque meu pai vivia repetindo pra mim que essas coisas de estrelas, saltos e cambalhotas se aprendia na ginástica olímpica.
Não pude ser ginasta profissional. Na cidade onde eu morava não tinha nada disso, em compensação, em nossas brincadeiras papai sempre nos incentivava.

Como somos uma família composta por cinco filhos e morávamos numa cidade um pouco perigosa, nossos passatempos e brincadeiras aconteciam sempre dentro de casa e, especialmente o quintal. Meus pais eram muito severos e exigentes, mas quando meu pai ficava a sós conosco e minha mãe saía, pegávamos fogo.

Era uma grande bagunça. As brincadeiras sempre envolviam o corpo. Simulávamos lutas - claro que todos os cinco contra meu pai -, fazíamos "montueira" em cima dele, cavalinho e tantas outras brincadeiras. Mas uma das que mais gostava era quando eu subia nos ombros de meu pai e tocava o teto com minhas mãos, como se eu estivesse plantando bananeiras no teto, mas de cabeça pra cima. Adorávamos também quando ele nos erguia com os pés e ficavámos nos equilibrando em suas solas.

Quando ouvíamos o ruído do portão, sabíamos que nossa mãe havia chegado. Então corríamos para frente da televisão, fingindo que nada havia acontecido e que estávamos o tempo todo assistindo aos programas exibidos, inclusive meu pai.
Ela entrava e via todos sentadinhos e nos indagava se estávamos fazendo bagunça. Todos negavam.

Claro que ela sabia da baderna. Não tinha como esconder o suor e as bochechas vermelhas. Nem disfarçar o calor que estava dentro de casa. Mas era só ela se ausentar que a zoeria continuava.

17.6.10

Infância I

Por volta dos quatro ou cinco anos eu aprendi a subir no telhado. Era fácil. Eu tinha duas maneiras de fazê-lo:

Na primeira, eu subia na mureta que alicerçava o portão, em seguida subia na caixa de cimento do relógio de força, depois me equilibrava no muro durante o percurso e por último me apoiava no telhado para subir.

Na segunda, eu me utilizava de uma técnica que tinha criado não sei bem ao certo para qual finalidade, a não ser subir nas coisas. Eu a usava comumente para alcançar o teto e relar minhas mãos lá, subindo através dos batentes da porta. Bastava colocar cada perna em um batente e subir de tanto em tanto com cada uma. Como havia um coqueiro com três troncos perto do telhado da garagem, eu subia neles igualzinho subia na porta até alcançar o topo. Este era o meu jeito preferido de subir até lá.

Eu adorava ficar em cima do telhado. Ficava deitado por horas à fio. Meu horário preferido era o findar da tarde, das 15h em diante, quando o sol não estava tão forte e as telhas já não queimavam os pés descalços. Apesar de gostar das estrelas e desejar por vezes ser astronauta, eu curtia mesmo era olhar para as nuvens e dar formas a elas.

Minha mãe não ralhava comigo, no máximo gritava: "Cuidado, vai cair daí menino!" ou "Vai se machucar aí em cima, hein?!". Mas quem não gostava nenhum um pouco das minhas aventuras nas alturas era o meu pai, a cada goteira ele esbravejava: "Moleque filho da puta, fica subindo no telhado e quebrando tudo as telhas!".

10.2.10

"O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis"

FERNANDO PESSOA

7.2.10

- Professor eu moro longe.
- Ah é?
- É. Mas fica aqui pertinho.

19.1.10

AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!

5.1.10

Eterno Retorno II

"Não é o Mesmo que volta, já que o voltar é a forma original do Mesmo, que apenas se diz do diverso, do múltiplo, do devir. O Mesmo não volta, é o voltar apenas que é o Mesmo daquilo que devém".

"O segredo de Nietzsche é que o eterno Retorno é seletivo. [...] nos dá uma lei para a autonomia da vontade desgarrada de toda a moral: o que quer que eu queira [...] devo querê-lo de tal maneira que lhe queira o eterno Retorno. Encontra-se eliminado o mundo dos 'semi-quereres', tudo o que queremos com a condição de dizer: uma vez, nada senão uma vez. Mesmo uma covardia, uma preguiça que quisesse seu eterno Retorno tornar-se-ia outra coisa diferente de um preguiça, de uma covardia: tornar-se-iam ativas e potências de afirmação".

"[...] Só volta a afirmação, só volta aquilo que pode ser afirmado, só a alegria volta. Tudo o que pode ser negado, tudo o que é negação é expulso pelo próprio movimento do eterno Retorno".

"O eterno Retorno deve ser comparado com uma roda; mas o movimento de uma roda é dotado de um poder centrífugo, que expulsa todo o negativo".

"O eterno Retorno é a Repetição, mas é a Repetição que seleciona, a Repetição que salva. Segredo prodigioso de uma repetição libertadora e selecionante".

GILLES DELEUZE - Nietzsche.

Eterno Retorno I

1.
A idéia do eterno retorno é uma idéia misteriosa, e uma idéia com a qual Nietzsche muitas vezes deixou perplexos outros filósofos: pensar que tudo se repete da mesma forma como um dia o experimentamos, e que a própria repetição repete-se ad infinitum! O que significa esse mito louco?

De um ponto de vista negativo, o mito do eterno retorno afirma que uma vida que desaparece de uma vez por todas, que não retorna, é feito uma sombra – sem peso, morta de antemão; quer tenha sido horrível, linda ou sublime, seu horror, sublimidade ou beleza não significam coisa alguma. Uma tal vida não merece atenção maior do que uma guerra entre dois reinos africanos no século XIV, uma guerra que nada alterou nos destinos do mundo, ainda que centenas de milhares de negros tenham perecido em excruciante tormento.

Algo se alterará nessa guerra entre dois reinos africanos do século XIV, se ela porventura repetir-se sempre, retornando eternamente?

Sim: ela se tornará uma massa sólida, constantemente protuberante, irreparável em sua inanidade.

Se a Revolução Francesa se repetisse eternamente, os historiadores franceses sentiriam menos orgulho de Robespierre. Como, porém, lidam com algo que jamais se repetirá, os anos sangrentos da Revolução transformaram-se em meras palavras, teorias e discussões; tornaram-se mais leves que plumas, incapazes de assustar quem quer que seja. Há uma diferença infinita entre um Robespierre que ocorre uma única vez na história e outro que retorna eternamente, decepando cabeças francesas.

Concordemos, pois, em que a idéia do eterno retorno implica uma perspectiva a partir da qual as coisas mostram-se diferentemente de como as conhecemos: mostram-se privadas da circunstância atenuante de sua natureza transitória. Essa circunstância atenuante impede-nos de chegar a um veredicto. Afinal, como condenar algo que é efêmero, transitório? No ocaso da dissolução, tudo é iluminado pela aura da nostalgia, até mesmo a guilhotina.

Não faz muito tempo, flagrei-me experimentando uma sensação absolutamente inacreditável. Folheando um livro sobre Hitler, comovi-me com alguns de seus retratos: lembravam minha infância. Eu cresci durante a guerra; vários membros de minha família pereceram nos campos de concentração de Hitler; mas o que foram suas mortes comparadas às memórias de um período já perdido de minha vida, um período que jamais retornaria?

Essa reconciliação com Hitler revela a profunda perversidade moral de um mundo que repousa essencialmente na inexistência do retorno, pois, num tal mundo, tudo é perdoado de antemão e, portanto, cinicamente permitido.

2.
Se cada segundo de nossas vidas repete-se infinitas vezes, somos pregados à eternidade feito Jesus Cristo na cruz. É uma perspectiva aterrorizante. No mundo do eterno retorno, o peso da responsabilidade insuportável recai sobre cada movimento que fazemos. É por isso que Nietzsche chamou a idéia do eterno retorno o mais pesado dos fardos.

Se o eterno retorno é o mais pesado dos fardos, então nossas vidas contrapõem-se a ele em toda a sua esplêndida leveza.

Mas será o peso de fato deplorável, e esplêndida a leveza?

O mais pesado dos fardos nos esmaga; sob seu peso, afundamos, somos pregados ao chão. E, no entanto, na poesia amorosa de todas as épocas, a mulher anseia por sucumbir ao peso do corpo do homem. O mais pesado dos fardos é, pois, simultaneamente, uma imagem da mais intensa plenitude da vida. Quanto mais pesado o fardo, mais nossas vidas se aproximam da terra, fazendo-se tanto mais reais e verdadeiras.

Inversamente, a ausência absoluta de um fardo faz com que o homem se torne mais leve do que o ar, fá-lo alçar-se às alturas, abandonar a terra e sua existência terrena, tornando-o apenas parcialmente real, seus movimentos tão livres quanto insignificantes.

O que escolheremos então? O peso ou a leveza?

Parmênides levantou essa mesma questão no sexto século antes de Cristo. Ele via o mundo dividido em pares opostos: luz/escuridão, fineza/rudeza, calor/frio, ser/não-ser. A uma metade da oposição, chamou positiva (luz, fineza, calor, ser); à outra, negativa. Nós poderíamos achar essa divisão em um pólo positivo e outro negativo infantilmente simples, não fosse por uma dificuldade: qual é o positivo, o peso ou a leveza?

Parmênides respondeu: a leveza é positiva; o peso, negativo.

Tinha ou não razão? Essa é a questão. Certo é apenas que a oposição leveza/peso é a mais misteriosa, a mais ambígua de todas.

MILAN KUNDERA - A insustentável leveza do ser.